Conforme prometido nas redes sociais (me segue lá: Instagram @julianapuggina Facebook /juliana.puggina.cirurgia.vascular) estou escrevendo este post para contar para vocês as novidades do 30th American Venous Forum Annual Meeting que aconteceu no final de fevereiro na cidade de Tucson, Arizona, nos Estados Unidos. Estive lá para apresentar o resultado da minha pesquisa sobre úlcera varicosa e também para aprender muito nas discussões com as grandes feras mundiais do tratamento das doenças venosas!
O assunto que mais deu o que falar no congresso este ano foram os resultados de um estudo sobre tratamento cirúrgico para trombose nas pernas, chamado ATTRACT Trial, que foi publicado no finalzinho de 2017 (leia mais aqui). O objetivo era saber se a cirurgia de retirada dos coágulos de dentro das veias com trombose, quando feita logo no início do quadro, ajudava a evitar as sequelas que a trombose causa dentro das veias as quais levam a sintomas como inchaço, dores e até feridas nas pernas para o resto da vida.
Mas antes de contar para vocês os resultados do estudo e por que esses resultados causaram tanta polêmica, vou falar um pouquinho sobre a trombose e quais os tratamentos que estão disponíveis para tratá-la, incluindo os tipos de cirurgias que podem ser feitas e quando elas devem ser realizadas.
(Está com preguiça de ler tudo?"Lá no final tem um resumo"!)
A trombose venosa é uma doença que acomete milhões e milhões de pessoas no mundo todo. Como eu já expliquei no post "Trombose venosa profunda: saiba como prevenir e tratar este problema", a trombose é uma doença que pode levar a morte em até 4% dos casos e sequelas irreversíveis nas veias das pernas em mais de 50% das pessoas que têm o problema. Vários fatores influenciam no aparecimento da trombose, como ter feito uma cirurgia recentemente, estar imobilizado, ter câncer, ser fumante, ser obeso, estar gestante ou ter tido um parto recentemente, ter feito viagens longas (acima de 8 horas), uso de anticoncepcional a base de hormônios e ter alguma doença genética das proteínas do sangue que aumenta a produção dos coágulos (as chamadas trombofilias). Ter varizes nas pernas também é um fator de risco para o aparecimento da trombose venosa, falei sobre isso mais detalhadamente no post "Varizes podem causar trombose?".
A trombose venosa causa inchaço e dor na perna repentinos.
O principal sintoma da trombose venosa profunda é o inchaço na perna. Normalmente, este inchaço ocorre em somente uma perna e de uma hora para outra, e é acompanhado de dor, sensação de peso e aparecimento de veias saltadas na perna afetada. Se você perceber esses sintomas, você deve procurar IMEDIATAMENTE um pronto socorro. Diante desse quadro de dor e inchaço, o médico da emergência irá suspeitar de trombose, porém, a única forma de confirmar a presença do problema é realizando um exame de Ultrassom Doppler Venoso Colorido dos Membros Inferiores (ou duplex scan) que vai mostrar se há ou não coágulos dentro das veias das pernas.
Se a trombose for confirmada, o tratamento tem que começar na mesma hora. Esse tratamento é sempre iniciado com medicamentos anticoagulantes, como a heparina, a enoxaparina, o rivaroxaban, o dabigatran e o apixaban. A varfarina, que é um outro tipo de anticoagulante muito utilizado, geralmente não é utilizada logo no momento do diagnóstico, sendo iniciada após pelo menos uma dose de heparina. O objetivo desses medicamentos é evitar o aumento do coágulo e o seu desprendimento das veias das pernas (o que é muito perigoso porque leva à Embolia Pulmonar - expliquei melhor como isso ocorre aqui). Em outras palavras, os medicamentos anticoagulantes não dissolvem o coágulo que já se formou dentro da veia, eles apenas impedem que o problema se alastre.
Então como é que faz para que a veia entupida pelo coágulo de sangue volte a funcionar?
A dissolução desses coágulos ou trombos que estão dentro das veias da pessoa que tem trombose acontecem naturalmente ao longo do tempo porque temos uma série de proteínas no nosso sangue que tem a capacidade de dissolver os coágulos. Essas proteínas fazem parte do sistema fibrinolítico. Mais de 70% das veias obstruídas por uma trombose voltam a carregar sangue ao longo do tempo, porém esse fenômeno pode levar meses e até anos para acontecer, o que faz com que o paciente tenha sintomas muito intensos durante este período. Além disso, esse processo de recanalização envolve uma reação inflamatória intensa na veia afetada e é aí que mora o problema.
Essa inflamação da veia entupida pelo coágulo acaba por danificar a estrutura interna de válvulas e as paredes da veia resultando em mal funcionamento e dificuldade de retorno do sangue de volta para o coração.
Eu já expliquei no post "Por que eu tenho varizes?"que as veias das pernas possuem pequenas válvulas que servem para que o sangue sempre ande na mesma direção: do pé para o coração. Se essas válvulas forem destruídas, o que acontece após a recanalização da trombose, o sangue poderá andar em ambas as direções: do pé para o coração e do coração para o pé. Por conta da força da gravidade, a tendência do sangue é fazer o caminho errado de volta para o pé quando estamos em pé ou sentados. Isso se chama refluxo venoso e pode ser visto no exame de ultrassom doppler. Esse refluxo venoso é o responsável pela perna da pessoa que já teve uma trombose continuar inchando e ficando pesada para toda a vida, apesar do coágulo já ter sido destruído e a veia estar recanalizada.
Para evitar que tudo isso ocorra, desde a década de 1970 os médicos pesquisadores da área iniciaram o uso de medicamentos que tivessem a capacidade de dissolver efetivamente os coágulos antes que acontecesse o processo inflamatório. Eles injetavam esse tipo de medicamento (chamados fibrinolíticos ou trombolíticos, como a estreptoquinase, uroquinase e alteplase) na corrente sanguínea do paciente esperando que o mesmo atingisse o local da trombose. O grande problema é que eles precisavam injetar uma quantidade grande da medicação para que o efeito desejado ocorresse, o que leva a uma chance enorme de sangramentos graves e até a morte. O risco não compensava o benefício.
Só na década de 90 é que apareceu uma solução para esse problema: ao invés de injetar um monte de medicamento fibrinolítico numa veia qualquer e rezar para o remédio atingir o local da trombose na quantidade necessária, iniciou-se a injeção de fibrinolíticos diretamente no local em que o coágulo se encontrava. Para isso, o cirurgião precisa fazer um cateterismo na veia da perna, isto é, introduzir um cateter que vai viajar pelas veias até atingir o coágulo, e só então injetar o medicamento em uma quantidade muito menor, porém suficiente para dissolver o trombo. Esse procedimento cirúrgico é chamado de Trombólise medicamentosa guiada por cateter. Porém, apesar de ter diminuído, o número de sangramentos graves ainda permanecia alto.
Na tentativa de diminuir ainda mais a quantidade de trombolítico utilizada e deixar a cirurgia ainda mais segura, foram surgindo cateteres especiais que, além de injetar o medicamento, levavam a uma destruição mecânica do coágulo, através de jatos fortes de líquido ou da rotação do cateter, seguida de aspiração dos fragmentos. Essa cirurgia passou então a ser chamada de Trombólise fármaco-mecânica guiada por cateter. (veja o vídeo aqui em baixo)
Vários pequenos estudos foram realizados para avaliar o método e demonstraram que a cirurgia de trombólise era capaz de dissolver o coágulo da trombose com muita eficácia, porém ainda não estava claro se a cirurgia era realmente capaz de diminuir a chance da pessoa desenvolver os sintomas de inchaço, dor, escurecimento da pele da perna e úlceras nas pernas, que compõem a chamada Síndrome Pós Trombótica. (para quem quiser saber mais detalhes, tem uma revisão desses estudos nesse link aqui)
A lógica dizia que se o coágulo fosse retirado da veia o mais rapidamente possível, ele não causaria o processo inflamatório que leva à destruição das válvulas das veias e, por consequência, a pessoa não teria os sintomas relacionados com a insuficiência venosa. Só que isso ainda não estava provado cientificamente.
A grande questão é a seguinte: vale a pena correr o risco, mesmo que pequeno (cerca de 3%), de ter um sangramento grave para evitar sintomas graves nas pernas por toda a vida? Tudo indicava que sim: valia a pena realizar a cirurgia de trombólise.
Para tirar a prova dos nove e bater o martelo em favor da cirurgia de trombose, pesquisadores americanos iniciaram em 2009 o estudo ATTRACT Trial, que comparou a cirurgia de Trombólise fármaco-mecânica guiada por cateter com o tratamento padrão apenas com medicamentos anticoagulantes em pacientes que tivessem uma trombose recente das veias do joelho para cima (não incluíram pessoas com trombose restrita somente do joelho para baixo porque esses casos são menos graves e geralmente não evoluem com muitas sequelas. Esses casos geralmente são tratados apenas com anticoagulantes). Nos casos em que a trombólise não causava a abertura total da veia, os pesquisadores realizavam a colocação de um stent metálico para manter a veia aberta.
Eles selecionaram 692 pacientes em 56 hospitais diferentes nos Estados Unidos e sortearam qual tipo de tratamento a pessoa selecionada iria fazer: metade fez cirurgia para dissolver os trombos além de tomar os medicamentos anticoagulantes e a outra metade somente tomou o anticoagulante e não foi submetida a nenhuma cirurgia. Os pesquisadores acompanharam todas essas pessoas por 2 anos para verificar se os sintomas da Síndrome Pós Trombótica iriam aparecer. O resultado final foi publicado em dezembro de 2017 no The New England Journal of Medicine, uma das mais importantes revistas científicas da área médica.
E pasmem....
Não houve diferença na porcentagem de pessoas que desenvolveram os sintomas da sequela de trombose entre os grupos. Ou seja: tanto faz retirar o coágulo de dentro da veia porque na prática o paciente vai acabar com os mesmos problemas.
Imagina só a confusão que esses resultados causaram entre os médicos que tratam da trombose. Ficou todo mundo sem saber direito o que fazer.
Apesar da porcentagem de pessoas com Síndrome Pós Trombótica não ter sido diferente, as análise complementares mostraram que a gravidade dos sintomas foi menor no grupo que foi operado. Em outras palavras, as pessoas que tiveram o coágulo retirado tiveram inchaços menos intensos, menos dor e uma chance menor de acabar com uma mancha escurecida na perna (dermatite ocre) ou até uma úlcera varicosa. Além disso, também se verificou que esse benefício era ainda mais evidente nos pacientes que apresentavam trombose das veias da virilha para cima, como as veias ilíacas e que as complicações de sangramento foram menores no grupo de pacientes com menos de 65 anos.
A conclusão é a seguinte: vale a pena fazer a cirurgia de Trombólise se a trombose venosa acometer veias grandes, especialmente aquelas acima da virilha (segmento ilíacofemoral), desde que a pessoa tenha baixo risco de sangramento e que tenha menos de 65 anos.
E depois que os sintomas da Síndrome Pós Trombótica já estão presentes, tem mais algum procedimento que possa ser feito?
Outro ponto que ainda não está muito claro é o caso das pessoas que tiveram uma trombose há alguns meses ou anos e acabaram evoluindo com um estreitamento (estenose) da veia acometida. Algumas vezes, apesar da dissolução do coágulo, a reação inflamatória que acontece na parede da veia durante o processo leva a formação de uma cicatriz que diminui o calibre da veia. Essas pessoas podem ter sintomas graves da Síndrome Pós Trombótica, como dermatite ocre e úlceras.
Nesses casos existe a possibilidade de realizar uma cirurgia de Angioplastia com colocação de Stent metálico para causar abertura da veia que está mais estreita do que deveria, e liberar o fluxo de sangue. Esse tipo de cirurgia também é feita através da técnica de cateterismo, sem a necessidade de cortes grandes na pele. Esse procedimento é realizado apenas quando a veia acometida se localiza acima da virilha (veias ilíacas). Se a sequela da trombose acometer as veias da virilha para baixo (femorais, poplíteas e tibiais), ainda não existe nenhum procedimento que tenha tido sucesso na desobstrução dessas veias menores. Expliquei mais detalhes sobre a angioplastia de veias ilíacas no artigo "Dor na relação sexual: pode ser varizes pélvicas! Saiba mais sobre esta doença".
Alguns estudos com pequeno número de pessoas mostraram que há melhora do inchaço e dores nas pernas, além de uma melhor qualidade de vida, nos pacientes que realizaram a angioplastia com stent das veias ilíacas associado ao tratamento das varizes que se formaram nas pernas após o quadro de trombose. (leia mais aqui).
E ainda tem mais um estudo vindo por ai. O mesmo grupo de pesquisadores que fizeram o ATTRACT Trial estão estudando agora 374 pacientes que tiveram estenose da veia ilíaca e varizes nas pernas após um quadro de trombose. Esses pacientes serão sorteados para receber a angioplastia com stent das veias ilíacas e a ablação com laser da veia safena varicosa, associada ao uso de meias elásticas e atividade física, ou apenas o tratamento com as meias e a atividade física. O estudo chama-se C-TRACT e os primeiros resultados estão previstos para 2021. Vamos aguardar !
Resumindo: quando a pessoa que tem ou teve uma trombose venosa deve ser submetida a uma cirurgia?
Fase aguda (logo que a pessoa apresentou a trombose)
- Nessa fase a cirurgia tem o objetivo de dissolver o coágulo de sangue que acabou de se formar dentro da veia com trombose.
- A cirurgia que é realizada na fase aguda chama-se Trombólise fármaco-mecânica guiada por cateter.
- Podem ser operadas as pessoas que tem trombose em veias grandes acima da virilha (veias ilíacas e cava). As veias entre o joelho e a virilha (veias femorais) também podem ser desobstruídas com a cirurgia se o paciente estiver com sintomas de inchaço e dor muito intensos e tiver um risco de sangramento baixo.
- A principal complicação da cirurgia é o sangramento, que pode ser grave como hemorragias no estômago, pulmão e cérebro. Então analisar individualmente o risco e o benefício de realizar a cirurgia.
Fase crônica - Síndrome Pós Trombótica (meses ou anos após a trombose)
- Nessa fase a cirurgia tem o objetivo de aumentar a luz ("abrir") das veias que foram estreitadas pelo processo inflamatório da trombose.
- A cirurgia que é realizada na fase crônica chama-se Angioplastia com Stent de veias ilíacas.
- Podem ser operadas as pessoas que tiveram uma trombose da veia ilíaca (que fica dentro da barriga) que levou a um estreitamento dessa veia. Essa cirurgia não é feita quando a trombose ocorreu somente nas veias da perna, da virilha para baixo (veias femorias, poplíteas e tibiais).
- A abertura da veia e aumento da passagem do sangue parece levar a uma melhora dos sintomas de inchaço e dores nas pernas, favorecimento da cicatrização das úlceras venosas, além de uma melhor qualidade de vida.
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Sobre a autora
Dra. Juliana Puggina é médica cirurgiã vascular e escreve artigos informativos no blog 'Pernas pra que te quero'. Formada em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com residência médica em Cirurgia Vascular e Doutorado em Ciências (Ph.D.) pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular e da American Vein & Lymphatic Society.
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